Ciência cidadã em territórios de desastres ambientais: a experiência do "Que Lama é Essa?"

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A ciência cidadã vem aparecendo como uma ferramenta importante de pesquisa e coprodução de conhecimento, particularmente em zonas críticas que envolvem desastres socioambientais. É o que pensa Lussandra Gianasi, professora e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais, coordenadora do grupo de pesquisa EduMite (Grupo de Pesquisa em Educação, Mineração e Território) e uma das criadoras do projeto "Que Lama é Essa?"O projeto parte de uma demanda de populações afetadas pelas lamas de enchentes provocadas pelas grandes chuvas do começo do ano de 2022 em Minas Gerais. Lussandra fala sobre a importância da atuação junto com as populações afetadas na construção de controvérsias que possam questionar e contrapor a atuação e influência das grandes empresas de mineração na região. Lussandra Gianasi nos conta um pouco sobre essa forma de atuação, seus desafios, limites e possibilidades na entrevista a seguir, concedida a Alana Moraes.

Alana Moraes é antropóloga e Doutora em Antropologia; atualmente realiza estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação do IBICT e UFRJ, no CindaLab, sob supervisão da profa. Sarita Albagli, com Bolsa de Pós-Doutorado Nota 10 da Faperj.

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Alana Moraes - Lussandra, muito obrigada pela disponibilidade de conversar conosco. Você poderia nos contar um pouco sobre sua prática de pesquisa, a atuação do EduMiTe - Grupo de Pesquisa Educação, Mineração e Território ?

Eu sou professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), atuo no departamento de Geografia e trabalho com as disciplinas ligadas às geotecnologias e linguagens: cartografia, sensoriamento remoto, geoprocessamento. Atualmente eu tenho me aproximado muito da área do ensino. Mas eu acredito que muito da minha trajetória tenha relação com o meu envolvimento com o projeto Manuelzão, como coordenadora de Geoprocessamento.  Foi pelo projeto Manuelzão que aprendi a fazer extensão e lá iniciei as minhas iniciativas de bancos de dados relacionados com questões sociais e, principalmente, as questões ligadas à água. Eu gosto muito de trabalhar com a extensão, é ela que permeia a minha vida de geógrafa. E é pelo fio condutor da questão da água, pelo mapeamento de bacias hidrográficas,  que eu chego em uma grande questão aqui de Minas Gerais que é a da mineração e todo o conflito decorrente dela. As áreas de mineração estão nas cabeceiras e nas áreas de nascente dessas águas das bacias hidrográficas. É então nesse contexto, em 2019, que a gente sente a necessidade de criar o EduMiTe -  eu junto da Daniela Campolina - co-coordenadora do Grupo, que foi minha orientanda em um trabalho de doutorado sobre educação e mineração. A gente percebeu que só acionar o Ministério Público, denunciar, que isso não fazia tanto efeito e que a gente precisaria atuar então empoderando a população. Nós percebemos que a mineração é muito pouco trabalhada nas escolas, especialmente de maneira crítica, nós trabalhamos muito com a perspectiva de Paulo Freire. A mineração afeta muito as escolas, a comunidade escolar e isso é muito pouco falado. A nossa atuação se daria então nessa interseção entre educação, território e mineração.

AM - Como surgiu o projeto Que Lama é Essa e como se deu a colaboração das pessoas com o projeto?

Em janeiro e fevereiro de 2022 ocorreram fortes chuvas, eventos climáticos extremos. Essas enchentes foram diferentes dos eventos que a população já conhecia antes dos rompimentos de barragens. Então as pessoas começaram a nos indagar dizendo que a cor e a viscosidade da lama estavam diferentes, pois são resultados novos, posteriores aos rompimentos. A lama estava pegajosa, tinha brilho.  A gente criou rapidamente um pequeno protocolo de como poderia se dar a captação de amostras de água, de lama e de solo dessas regiões, estávamos já em contato com uma rede de pessoas desses territórios, a partir de grupos de Whatsapp já mobilizados, especialmente das bacias do Rio da Velha e do Rio Doce. A gente entende o desastre como processo, então ele ainda continua.

Chegaram muitas amostras enviadas pelas pessoas e nós fizemos uma seleção das amostras que chegavam em melhores condições. Pedimos também para que as pessoas inserissem as coordenadas geográficas, fotos e vídeos de onde eram coletadas as amostras.  Naquele momento a gente já fez a análise da água, que precisa ser feita logo. Começamos a armazenar as amostras na universidade e depois passamos a pensar sobre quais seriam as melhores técnicas para lidar com as amostras, pensando na questão da toxicidade. Nós buscamos uma parceria com a Universidade Federal do Maranhão porque não queríamos que as análises fossem feitas em laboratórios daqui, que pudessem trabalhar para a Vale do Rio Doce ou outras empresas minerárias. Parte das análises já foram feitas e hoje estamos discutindo a melhor forma de fazer a divulgação desses dados porque se trata de informações muito delicadas. Pesquisadores, ativistas e professores já foram ameaçados, por exemplo. Estamos em uma zona muito complexa da ciência. A Fundação Renova, por exemplo, ligada à mineração, já se apropriou do que fazemos. Agora querem fazer "mapeamento participativo" porque sabem que nós criamos essa rede. Nossas análises estão sempre na mira dessas grandes corporações, por isso precisamos estar muito bem amparados cientificamente e juridicamente antes da divulgação de qualquer dado.

AM - Aparece muito na atuação de vocês a ideia de construir saberes conjuntos com populações afetadas ou ameaçadas pelos  impactos da mineração. Ao mesmo tempo, vocês também chamam a atenção para o conjunto de controvérsias promovidas pela a atuação das mineradoras nos territórios em termos de informação, influência e dados.

Toda a história de Minas Gerais tem relação com a mineração, inclusive a história da escravidão. A mineração tem um modus operandi para atuar junto das pessoas, das populações, das instâncias de decisão política. Elas chegam dizendo que vão trazer emprego, desenvolvimento, progresso e elas têm muito poder midiático, fazem seus próprios mapeamentos, insistem que são o setor que mais empregam. Eles contratam os melhores geólogos, geógrafos, sociólogos para fazerem réplicas das pesquisas que apresentem controvérsias. Eles pagam salários, principalmente após os desastres, que muitas vezes é melhor do que a média do mercado e essas pessoas produzem informações, dados, que favorecem o discurso dessas corporações. O que a gente faz é criar outras controvérsias, mostrar que eles não são o setor que mais emprega, por exemplo. Estamos tentando oferecer material de formação para os professores. Nós sabemos que muitas das nossas pesquisas, artigos, não têm impacto, não chegam nessas populações afetadas, não circulam. Por isso a gente precisa de uma atuação mais no chão, da escola, do território, ao mesmo tempo que buscamos também parceiros internacionais. O grupo não trabalha para mineração de forma nenhuma, porque a gente sabe que na universidade hoje, há aporte financeiro muito grande para pesquisa vindo da mineração, principalmente depois dos grandes rompimentos.

AM - O que é e qual a importância da ciência cidadã para vocês, nesse contexto? Quais os principais desafios desse tipo de produção de conhecimento e qual a sua principal força?

Depois que eu entrei para a Rede Brasileira de Ciência Cidadã (RBCC), comecei a ler mais sobre isso, entender que o que a gente fazia era ciência cidadã. Nós agora queremos formar mais pessoas, oferecer capacitação para essas pessoas que já estão com a gente para que elas possam e saibam coletar materiais adequadamente quando ocorrer algum desastre, pois eles têm um olhar muito atento sobre o território. É um trabalho muito desafiador porque a gente não tem financiamento e, do outro lado, as mineradoras contam com recursos muito volumosos e estão sempre prontas para questionar nossos dados. Por isso é muito delicado sempre quando divulgamos nossos dados, é importante ter ajuda jurídica, de comunicação, são dados muito sensíveis. Agora nós pretendemos primeiro publicar os resultados em uma revista científica bem avaliada, antes de circular mais amplamente. É um modo de fortalecer e legitimar nossa atuação que pode ser atacada.  Mas a gente prefere divulgar os dados puros  do que propriamente uma análise. As amostras precisam de muita segurança para não serem violadas ou adulteradas, os laboratórios possuem biometria, não é qualquer pessoa que pode entrar. Por isso também fazemos duplicidade de análise de amostras, para garantir ainda mais confiança nos dados.

Depois dos desastres a gente tem visto que a reparação não acontece de forma justa e o lado fraco da história é o lado das pessoas que foram atingidas e aí a ciência cidadã oferece uma alternativa de entendimento dos problemas, dos dados, para que as pessoas possam se apropriar também na luta por justiça.

AM - O tipo de conhecimento coproduzido nesses contextos tem muita relação com a experiência dessas pessoas, com suas histórias sempre em relação com as histórias dos territórios, o que também nos parece um elemento fundamental para a prática da ciência cidadã. Como vocês vêm trabalhando a partir disso?

Eu tenho Milton Santos como o grande geógrafo de referência. E ele diz que quem vive e quem conhece o território é quem está no chão do território, sem essas pessoas a gente não faz uma ciência cidadã, elas são os melhores pesquisadores do território, são elas que conhecem a cor do rio, o comportamento das águas. Elas que primeiro percebem quando começam alguma escavação, quando colocam dinamite para explodir alguma área de mineração. Mas a gente precisa estar junto também, para capacitar, para fornecer as leituras técnicas e a gente precisa traduzir essa linguagem técnica para a realidade deles. Mas para isso é muito importante essas redes nesses territórios, porque as afetações de rompimentos, alterações são muito novas, muito diversas, nunca estudadas e a gente sempre vai ter uma coisa diferente e as pessoas, elas demandam, sempre demandarão, o que elas querem,  como que elas gostariam que o rio delas fosse.

Sugestões de leituras e outros materiais

CAMPOLINA, D.; GIANASI, L. M. Climate Justice and Participatory Research: Building Climate-Resilient Commons. In: PERKINS, P. E. (org.). Mining and Water Insecurity in Brazil: Geo-Participatory Dam Mapping (MapGB) and community empowerment. 1ed. Calgary: LCR Publishing Services, 2023, v. 1, p. 1-320.

CAMPOLINA, D.; GIANASI, L.; OLIVEIRA, B. Controvérsias sociocientíficas de forte impacto local: o caso da (in)segurança de barragens de rejeitos de mineração. In: SIMPÓSIO NACIONAL CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE, 8., 2019, Belo Horizonte. Anais [...]. Belo Horizonte: Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. 2020. p. 915-934. Disponível em: https://zenodo.org/record/3759683#.XvtoTShKhPY. Acesso em: 4 abr. 2023. 

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 64 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.

FREITAS, C. M et al. Da Samarco em Mariana à Vale em Brumadinho: desastres em barragens de mineração e Saúde Coletiva. Cadernos de Saúde Pública, v. 35, n. 5, 2019. Disponível em:  https://doi.org/10.1590/0102-311X00052519. Acesso em: 4 abr. 2023.

GIANASI, L. M.; CAMPOLINA, D. Mapeamento geoparticipativo: caminhos para a construção da gestão participativa das águas em tempos de crise hídrica a partir da metodologia 3P. Ateliê geográfico, Goiânia, v. 14, n. 1, p. 112-13, abr. 2020. Disponível em: https://revistas.ufg.br/atelie/article/view/55864/35001. Acesso em: 4 maio 2023. 

GIANASI, L. M.; PERKINS, E. Educação e Mineração em tempos de mudanças climáticas. Publicado pelo canal EduMiTe. 7 nov. 2022. 1 vídeo (110 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wnNkSLSfP2U. Acesso em: 5 maio 2023. 

GIANASI, L. M.; CAMPOLINA, D. Geotecnologias na educação para gestão das águas: mapeamento geoparticipativo 3P. 1. ed. Belo Horizonte: Fino Traço, 2016. 104p .

MAIA; M.; MALERBA, J. (org.) A mineração vem aí... e agora? Um guia prático em defesa dos territórios. Rio de Janeiro: FASE-Poemas, 2019. (Série mineração: para quê? Para quem?, v. 1.) Disponível em: https://fase.org.br/wp-content/uploads/2019/08/A_mineracao_vem_ai_E-agora_interativo.pdf . Acesso em: 5 maio 2023.  

MILANEZ, B.; LOSEKMAN, C. (org.) Desastre no Vale do Rio Doce: antecedentes, impactos e ações sobre a destruição. Rio de Janeiro: Folio Digital, 2016. Disponível em: https://www.ufes.br/sites/default/files/anexo/desastre-no-vale-do-rio-doce.pdf. Acesso em: 5 maio 2023. 

PINHEIRO, T. M. M. M; POLIGNANO, M. V.; GOULART, E. M. A.; PROCÓPIO, J. C. (org.). Mar de lama da Samarco na bacia do Rio doce: em busca de respostas. Belo Horizonte: Instituto Guaicuy, 2019. Disponível em: https://manuelzao.ufmg.br/biblioteca/o-livro-mar-de-lama-ja-esta-disponivel-em-formato-digital/. Acesso em: 4 maio 2023.  

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Simpósio Internacional Educação, Mineração e Mudanças Climáticas: EduMiTe. 2022. Disponível em: https://www.edumite.net/simposio-internacional. Acesso em: 5 maio 2022.

VIEIRA, D. C.; GIANASI, L. M.; MARSHALL, J.; PERKINS, P. E.; OLIVEIRA, B. J. Mineração, desastres, formação crítica: casos no Brasil e no Canadá. Revista da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 296–321, 2021. DOI: 10.35699/2316-770X.2020.21466. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistadaufmg/article/view/21466. Acesso em: 4 maio 2023. 

ZONTA, M.; TROCATE, C. (org.) Antes fosse mais leve a carga: reflexões sobre o desastre da Samarco/Vale/BHP Billiton. Marabá: Editorial iGuana, 2016. 237p. (A questão mineral no Brasil, v. 2). Disponível em: https://www.ufjf.br/poemas/files/2016/11/Livro-Completo-com-capa.pdf. Acesso em: 4 abr. 2023. 

 

COMO CITAR:

GIANASI, Lussandra. Ciência cidadã em territórios de desastres ambientais: a experiência do "Que Lama é Essa?" Entrevistadora: Alana Moraes. Civis Blog, Brasília, 9 maio. 2023. Disponível em: https://civis.ibict.br/blog/2023/05/10/ciencia-cidada-em-territorios-de-desastres-ambientais-experiencia-do-que-lama-e-essa/. Acesso em: 9 maio 2023. 

 


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